sexta-feira, 17 de junho de 2011

" Se não os frustrarmos vão ficar detestáveis" - Mário Cordeiro

Mário Cordeiro
«Se não os frustrarmos vão ficar detestáveis»
01 | 06 | 2011   09.03H
Aos conhecimentos técnicos, é pediatra, soma a experiência, como irmão de um clã de muitos, tio, pai e avô, para não falar das centenas de crianças que acompanha no consultório. Chega? Chegar, chegava, mas soma-lhe ainda bom-senso e uma facilidade de comunicação, capaz de tornar simples as coisas mais complicadas. Em entrevista ao Destak.

Isabel Stilwell | editorial@destak.pt

Os pais de hoje são melhores, iguais ou piores pais do que os seus pais?
São diferentes. São diferentes como pessoas, dado o percurso de vida diferente que tiveram em relação aos pais e avós, sobretudo num país que teve uma transição social muito rápida; são diferentes as famílias, na sua composição e estrutura; é diferente a sociedade, seja na tecnologia, seja nos estilos de vida, transportes, horários, trabalhos e regras e premissas sociais. A vida da mulher e do homem alterou-se muito, bem como os aspectos relacionais dessa vida. Uma coisa é certa: são os melhores pais que os filhos podem ter, e isso é que interessa. Não se podem comparar coisas que são incomparáveis, passe o pleonasmo.

Como reage àquela ideia, que tanta gente repete, de que em criança é que se é feliz...
As crianças são felizes, embora a infância não seja um universo cor-de-rosa, mas sim um quadro que começa em tons bem negros e ao qual poderemos adicionar cores, entre as quais a cor-de-rosa, bem como alguns (muitos) arco-íris. Mas para ter arco-íris é necessário ter sol mas também chuva. Há crianças mais felizes e outras menos felizes, e ainda há, felizmente, uma minoria muito infeliz, mas porventura menos do que anteriormente, embora careçamos de dados epidemiológicos para sustentar uma afirmação destas, que pertence mais ao domínio das convicções.

Os pais, sobretudo as mães, falam muito da 'culpa' que os persegue?
Muito, mas é preciso desfazer esse mito da super-mulher, e a culpabilização das mães por trabalharem. As mães sempre trabalharam, e não apenas em casa ou no meio rural: há 100 anos, mais de um terço das mulheres trabalhava em fábricas, vendas, etc. Chega de culpa, essa odiosa herança da nossa moral judaico-cristã. É preciso responsabilização, mas não culpabilização, porque esta, além de injusta, vitimiza e paralisa.

O maior drama dos pais de hoje é a falta de tempo?
Não digo que os dias tenham 48 horas ou que uma vida pessoal plena não contemple muitos universos que não apenas o prestar cuidados aos filhos, mas sendo o tempo um bem finito e escasso, há que o valorizar como precioso e usá-lo bem. E fazer ver aos nossos filhos que quando nos vêem, depois de um dia inteiro de ausência, estão 'famintos' de pais, que eles são a nossa prioridade. O que não quer dizer que sejam o nosso único destino ou que tenham espaço para libertar a sua omnipotência narcísica e egoísta. Mas a nossa prioridade, são.

É possível 'tempo de qualidade' sem tempo de facto?
Claro que há que ter um mínimo de tempo e aí entra outra coisa: opções. Cada um deve estudar, com critério, quais as prioridades e não pensar que são deuses e que podem fazer tudo. Não podem. Ter filhos levará a que muitas outras coisas terão de ser postas um pouco à margem, designadamente a cegueira pelas «car-reiras» e pelo trabalho. E, note, não tem nada a ver com o trabalho enquanto necessidade de vida, mas com o culto desse trabalho como Ente supremo nas nossas vidas.

De que forma é que o Estado, nós todos, podíamos ajudar os pais a ter uma vida mais fácil?
A maneira como uma sociedade trata as crianças (e os seus cuidadores) diz bem do grau de civilização dessa sociedade. E por muita UE que sejamos e modelo nórdico que ambicionemos (nos discursos), estamos a milhas desses horizontes e não se vê vontade política, nem sequer para debater o assunto. E não é com cheques-bebés e outras coisas no género, ou a beijar criancinhas em campanha eleitoral. É com medidas que apoiem a maternidade e a paternidade (como algumas das tomadas quando do nascimento) e com a intolerância perante abusos cometidos pelos empregadores. Por outro lado, o Estado não se deve substituir às pessoas e os pais, que têm de ter coragem para aproveitar a Lei sem reservas. Infelizmente, muitos pais não querem ter a 'maçada' de estar com os filhos.

Tenho ouvido pediatras e psicó-logos dizer que a tolerância dos pais à dor e à frustração dos filhos é excessivamente baixa. Sente que é assim?
Quando os pais não são capazes de ser pais, só causam insegurança. A vida faz-se de coisas boas e outras menos boas, que valorizam as boas.

O que acontece quando não somos capazes de os frustrar?
A baixa tolerância à frustração é um passo para criar pessoas narcísicas, birrentas, omnipotentes, numa palavra, detestáveis e que são um autêntico cancro social e relacional. Não se pode ter 'tudo já', nem sequer 'tudo'. É bom que os pais ensinem a frustração e como ter planos B que a menorizem, caso contrário teremos crises sucessivas de ganância de humanos que se acham deuses e podem ter tudo o que querem, só por terem um cartãozinho de crédito.

Imagine-se num parque infantil. Uma frase: 'Não consigo fazer nada dele', enquanto o menino arranca o balde da mão de outra criança, ou dá pontapés na própria mãe...
O menino arranca o balde, devolve o balde e pede desculpa. O menino dá um pontapé na mãe e vai de castigo. Tão simples como isso. Tudo o resto é fantasia de pessoas mal resolvidas e com medo da censura social. Quando uma criança faz uma birra em público, quem fica mal vista é ela, ou os pais que nada fizerem. Os pais que actuam como deve ser só ficam bem no retrato.

Ainda outro comentário: «O meu filho foi fazer testes para ver se 'entra' no jardim-de-infância» (desta ou daquela escola, normalmente bem cotada). Como sente uma criança este exame de admissão, sobretudo se não entrar? Começa a vida já como um falhado?
Testes para o jardim-de-infância? Mas estará tudo doido? Nem comento, mas gente parva sempre houve, não é necessariamente de agora, e esses testes têm a ver, muitas vezes, com começarem-se a formar «cavalos de corrida» para ocuparem no futuro lugares de relevo. Muitas escolas particulares são 'braços armados' de estratégias de grupos económicos, religiosos e outros. Bem-haja a escola pública!

A outra frase que vai ouvir de certeza é «o meu filho é alérgico». Há mais alergias de facto, são mais diagnosticados, ou é quase um rótulo que justifica os medos dos pais perante o desconhecido?
Há mais alergias e reacções similares, decorrentes da degradação ambiental que não vemos, mas que existe… e que o nosso corpo sente. Não tem a ver com a alimentação, exclusivamente, até porque nunca circularam produtos de tão boa qualidade no espaço europeu, mas sim com a poluição, os escapes automóveis, a retenção dos pólenes nas cidades por acção da poluição e do calor urbano, etc. O ambiente mudou, mas o nosso organismo é o mesmo de há milhares de anos e não se adapta geneticamente de um dia para o outro.
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Ingredientes para uma criança feliz

1 - Amor - Dar e receber, mas de forma explícita, não apenas intencional ou conceptual. Conselho: habituem--se a pedir aos vossos filhos para dizerem duas coisas que correram bem nesse dia e duas que correram menos bem. Falem sobre elas.

2 - Educação - Regras, firmeza afectiva, limites, instrução, cultura. Conselho: Não pensem que os meninos mal-educados que vêem foram atingidos por um qualquer raio cósmico. São o resultado de anos e anos de 'má-educação'.

3 - Lazer, desporto, actividades artísticas, espaços amplos de liberdade. Não esquecer que os pais são os modelos principais para as crianças. Se fica no sofá, não se admire...

4 - Debate de ideias, ética, noções filosóficas desde muito cedo, capacidade de argumentação, coerência e consistência na defesa daquilo em que se acredita.

5 - Ler, ouvir música, escrever, fantasiar, criar, amar. Diferente de estar sempre a impor actividades...

http://www.destak.pt/artigo/96998

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